Monday, May 23, 2011

Quim

Um cheiro forte mas aprazível a ferro quente embrulha-se numa frequência sonora irritante pela plataforma fora. Os fios e linhas e cabos somem-se da vista pela linha do horizonte numa rectidão longínqua, que começa mas não acaba. A espera leva à antecipação, à imaginação. As correrias e malas arrastadas e cigarros pisados sugerem idas, regressos, jornadas, voltas, encontros, reencontros, todos com origem e destino, cabeça tronco e membros. Há quem vá entrando, quem espere cá fora, quem vem sozinho ou evite despedidas ou quem faça recomendações e envie saudades ou apenas fume o que conseguir no pouco tempo que tem.

Sobe-se um pouco, enviúsa-se uma mochila e espera-se pela marcha, sentado em suspiros ou bocejos. Vêem-se os últimos acenos, enfiam-se camisolas e merendas em sacos e arrancamos devagarinho. Fazem-se as contas para as horas de chegada, pensam-se em jantares e ceias. Avisa-se a família e amigos que a saída foi certeira, em telefonemas demasiado curtos e inúteis.

De repente as linhas esboçadas na janela informam que a velocidade aumentou. De olhos fechados não se perceberia, pelo balanço suave e silencioso não se dava por nada. Os vidros da carruagem arrastam paisagens que correm rápido demais para serem percebidas. Chovem na horizontal postes e prédios e ruas e carros que não se deixam identificar. As pedras junto aos carris transformam-se numa linha branca e cinzenta contínua e hipnotizante.

Abre-se a vista e o campo. Vê-se muito verde. Qualquer coisa acalma cá dentro e respira-se fundo lentamente, fazendo esquecer a velocidade. Purga-se terra adentro, terra acima, não se avança no tempo porque a direcção é o Norte, meridiano afora. Fecham-se os olhos, mas não se quer perder o caminho. Esquece-se o dia, a noite, os anseios e desassossegos. Não temos sentido mas temos destino. Quem me dera que nunca acabasse.


in train to Bracara Augusta

12-5-11

TV untitled

A luz incidia com a sua habitual brusquidão melosa nos meus olhos e no meu cérebro. As cores cruzavam-se consoante o trocar dos planos, corpo inteiro, grande plano das caras, aquietando qualquer touro enraivecido. O áudio preciosamente nivelado e calibrado entrava a direito pelo meu ouvido interno adentro, fechando-me numa bolha só para mim, sem precisar de oxigénio, toque, alimento ou sinal de vida exterior. Quem me visse de trás reparava certamente num halo amarelo angelical à minha volta, e se se concentrassem veriam que estava a levitar. As minhas pupilas dilatavam e encolhiam consoante a luminosidade irradiada pelo ecrã, encaminhando por todo o corpo torrentes de prazer e deleite. Sem dar por isso sabia que todas as minha glândulas artérias poros e nervos borbulhavam o milagre da vida dentro de mim, tranquilizando o meu cérebro que se ocupava única e exclusivamente com a recepção de preciosa informação transmitida por via de frequências hertzianas. Sou um só, comigo e com o mundo, lá fora, cá dentro, no eterno e no agora. Não me incomodem, estou a ver televisão.

De viagens e afins.

Eu não sou eu.
Pelo menos recentemente, desde que me falaram de discurso e me puseram as primeiras palavras na boca. Não sou eu que as invento, nem que as transformo, nem tampouco escolho em que ordem saem nem que efeito terão. Não sou eu que me desloco, nem eu que ingiro oxigénio ou azoto ou monóxido de carbono. Eu não sou os nutrientes de que me alimento, ou as proteínas, ou os glóbulos que nadam aqui dentro, sejam eles de que cor forem.
Eu sou tudo, e tudo sou eu.
Tudo o que eu sinto, ou relembro, ou imagino passa por mim e toca-me, à distância de 5 galáxias e 3 Universos. Porque hesito então em deixar-me ligar? Não custa, não dói, e as marcas que deixa embelezam-me ainda mais. O passo mais fácil é este, a queda, porque trata de tudo por mim. É favor agarrar a corda e atá-la onde se achar melhor, pois só quando todos estivermos ligados é que a luz acende.
Eu sou todos, todos somos eu.

in bus from Nazaré
5-5-11